Apologia
dos naufrágios consentidos
“Depois de ter estabelecido estas coisas, eu pensava
entrar no porto, mas quando me pus a meditar sobre a união da alma e do corpo,
fui como que lançado de volta ao alto mar” (Leibniz)
Apartado de qualquer tipo de dogma, nutrindo o
descaramento daquele que ousa fazer apologia da dúvida, tento me afastar de
percursos convencionais do pensar. Essa tarefa é uma espécie de hybris, a
desmesura provocada pelos reles (porém destemidos) humanos que ousavam
enfrentar as opressoras linhas de ação traçadas pelos deuses gregos — sempre
sádicos e fatais.
Os resultados nos são conhecidos: castigos
definitivos (Prometeu, Sísifo, etc), punições elaboradas por torturadores
meticulosos, com poderes muito superiores aos nossos.
Mas creio que tais diretrizes implacáveis não são
monopólios dos deuses gregos. Elas estão presentes — talvez de maneira mais
mitigada — em todas as épocas e atualmente assumem formas variadas e
possivelmente mais eficientes do que nos períodos anteriores.
Dentre elas, existem as infinitas prescrições de
conduta, enunciadas pelos deuses da imanência contemporânea: as universidades,
empresas, bancos, famílias, etc, verdadeiros mananciais de castração do
livre-pensar. Por todo o lado, vigora a vigilância contínua sobre o insolente
que ousa questionar os cânones que conferem frágil solidez ao mundo incolor dos
dogmáticos.
Rapidamente transformado em autêntico inseto
kafkiano, sobre ele recaem epítetos empobrecedores: é o "pessimista",
o "crítico" insuportável, o “outsider”, “fracassado”, etc.
Alguns lhe direcionam olhares cheios de uma
compaixão hipócrita, cujo sentido é claro: "É um coitado, um dia ele se
encontra, um dia conhecerá a verdade" (que assume, para estes sádicos do
bem, a forma de Deus, família, estabilidade financeira e todos os tipos de
amesquinhamento das potencialidades...).
O resultado mais brando para aqueles que enfrentam
estes sistemas opressores é o exílio ontológico, um tipo de solidão definitiva
e incontornável.
O desfecho mais trágico e — ironicamente — talvez
mais comum é a loucura, um continente secreto, incompreensível, que irradia
efeitos nucleares que desestabilizam o universo dos domesticadores do real.
Apesar da gravidade dessas sanções, sempre
preferirei a vertigem que reside na liberdade de configurar meus abismos.
Prefiro ser lançado inúmeras vezes ao alto-mar. Serei um afogado satisfeito
consigo mesmo, feliz com o naufrágio deliberado. Que os covardes continuem a
traçar seu itinerário limitado, caminhando com segurança na terra firme de suas
convicções.