sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Apologia dos naufrágios consentidos

“Depois de ter estabelecido estas coisas, eu pensava entrar no porto, mas quando me pus a meditar sobre a união da alma e do corpo, fui como que lançado de volta ao alto mar” (Leibniz)

Apartado de qualquer tipo de dogma, nutrindo o descaramento daquele que ousa fazer apologia da dúvida, tento me afastar de percursos convencionais do pensar. Essa tarefa é uma espécie de hybris, a desmesura provocada pelos reles (porém destemidos) humanos que ousavam enfrentar as opressoras linhas de ação traçadas pelos deuses gregos — sempre sádicos e fatais.
Os resultados nos são conhecidos: castigos definitivos (Prometeu, Sísifo, etc), punições elaboradas por torturadores meticulosos, com poderes muito superiores aos nossos.
Mas creio que tais diretrizes implacáveis não são monopólios dos deuses gregos. Elas estão presentes — talvez de maneira mais mitigada — em todas as épocas e atualmente assumem formas variadas e possivelmente mais eficientes do que nos períodos anteriores.
Dentre elas, existem as infinitas prescrições de conduta, enunciadas pelos deuses da imanência contemporânea: as universidades, empresas, bancos, famílias, etc, verdadeiros mananciais de castração do livre-pensar. Por todo o lado, vigora a vigilância contínua sobre o insolente que ousa questionar os cânones que conferem frágil solidez ao mundo incolor dos dogmáticos.
Rapidamente transformado em autêntico inseto kafkiano, sobre ele recaem epítetos empobrecedores: é o "pessimista", o "crítico" insuportável, o “outsider”, “fracassado”, etc.
Alguns lhe direcionam olhares cheios de uma compaixão hipócrita, cujo sentido é claro: "É um coitado, um dia ele se encontra, um dia conhecerá a verdade" (que assume, para estes sádicos do bem, a forma de Deus, família, estabilidade financeira e todos os tipos de amesquinhamento das potencialidades...).
O resultado mais brando para aqueles que enfrentam estes sistemas opressores é o exílio ontológico, um tipo de solidão definitiva e incontornável.
O desfecho mais trágico e — ironicamente — talvez mais comum é a loucura, um continente secreto, incompreensível, que irradia efeitos nucleares que desestabilizam o universo dos domesticadores do real.
Apesar da gravidade dessas sanções, sempre preferirei a vertigem que reside na liberdade de configurar meus abismos. Prefiro ser lançado inúmeras vezes ao alto-mar. Serei um afogado satisfeito consigo mesmo, feliz com o naufrágio deliberado. Que os covardes continuem a traçar seu itinerário limitado, caminhando com segurança na terra firme de suas convicções.







sexta-feira, 22 de março de 2013


Se houver alguma arte de viver, talvez ela consista em encontrar uma zona intermediária entre a fria desesperança do Eclesiastes e a exaltação maníaca do Apocalipse.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


O "esquecimento do ser” é um dos principais lemas apregoados por Heidegger em todo o seu percurso filosófico. Tal esquecimento, a meu ver, é uma verdade banal. Não há necessidade de uma pirotecnia verbal sofisticada para elucidá-lo, nem sequer de uma volta aos pré-socráticos para que compreendamos o sentido da expressão. Sei que corro o risco de trivializá-la, mas, para um observador criterioso, o dia-a- dia se encarrega de comprovar, de uma maneira irrefutável, a veracidade e o alcance dessa máxima heideggeriana. No encontro com a maioria das pessoas, a tagarelice delas, a avidez de novidade, o interesse mesquinho e ilimitado, são sintomas notórios desse crepúsculo ontológico. Numa tentativa de saciar a fome de frivolidades, elas querem sempre o novo, o frescor dos fatos - que no fundo parecem os mesmos. Apesar da minha resistência, essa conduta barulhenta, desesperada por manchetes da vida ordinária, me impele a ser um paparazzi ou um repórter sensacionalista de mim mesmo. Tais criaturas me estimulam a me reificar, a me transformar em um artefato curioso e, ao mesmo tempo, banal. . Sinto-me diante da primazia do fazer sobre o ser, sinal eloquente do ocaso dos humanos desta época. Na realidade, não sei se o ser está esquecido. Parece-me que ele está tão ocupado com as novidades que já não tem mais tempo de ser. No mínimo, perdeu a trilha para a tessitura de um ser minimamente autêntico. O ser do ente heideggeriano transformou-se no ser doente.

domingo, 13 de janeiro de 2013


A maior obscenidade que se pode cometer contra um deus é tentar torná-lo nosso parente.